Essa é uma narrativa especial, feita especialmente em comemoração ao Dia Mundial do Rock, 13 de julho. Nela, contamos a história de Roque Enrow, um senhor de 70 anos de idade desiludido com os rumos que sua vida tomou.
13 de julho, 2011
Acho que já passa das 4h da manhã… acabei de chegar em casa depois de uns tragos no boteco da esquina com os camaradas de sempre. Não sei como ainda agüento, não tenho mais idade pra fazer isso. No começo é sempre igual: “só um gole, pra esquentar, e depois vou embora”, o problema é que esse gole sempre se estende, ainda mais em uma noite fria como essa. Anos atrás eu teria motivos para comemorar esse dia 13 de julho, hoje, porém, só queria beber até o frio e as lembranças do passado irem embora. Quando será que vou aprender que as lembranças nunca irão embora?? É, mais um ano de vida, meu velho… mais um ano perdido, sem esperança ou perspectiva. Eu olho para o meu passado e me pergunto: onde foi parar aquele eu revolucionário, aquela sede por mudança? Hoje é tudo uma grandessíssima merda, essa juventude alienada com cérebros atrofiados… no meu tempo, os cérebros eram sequelados pelo tanto de porcaria que a gente usava, mas no final a idéia era só abrir a mente pra conseguir mudar esse mundo! Mas que culpa tem os guris, se está tudo virado num caos mesmo? Depois que tudo desandou desse jeito, não tem mais volta, não, é daqui pra baixo. Não sei, ultimamente eu me olho no espelho e só vejo um velho barbudo perdido, sem rumo. Não sou eu, não me reconheço mais.
Só consigo pensar em como antigamente as coisas eram diferentes… no meu tempo de guri, os anos 50, eu lá com meus 14 anos descobrindo muita coisa boa nessa vida. Foi mais ou menos nessa idade que a música entrou na minha vida, foi uma parada de paixão mesmo, carnal e visceral. Depois que eu segurei minha primeira guitarra, nunca mais quis saber de outra coisa. Lembro que meu velho só sabia falar de guerra, que eu tinha que agradecer por aquilo tudo ter acabado, que minha vida era uma moleza. Eu tava cagando praquilo! Só queria saber de juntar uma grana, comprar uma caranga e poder sair de casa, curtir a vida, ter independência! Eu via aquele cara no cinema, o transviado do topete e da jaqueta de couro, e queria ser como ele, queria ter uma Marylin na carona do carro, pra que mais do que isso? Minha guitarra, um carrão e uma mina. Mas eu não passava de um guri sonhador mesmo, me achava grande coisa com aquele cabelo besuntado de brilhantina e um par de sapatos lustrados…
Lá pelos meados da década de 60 eu consegui juntar uma grana, comprar um Volks meio capenga e sair da casa dos velhos. Liberdade, finalmente! Fui morar num pardieiro com uns cabeças que conheci na faculdade (na época eu cursava Filosofia, um dos tantos cursos que comecei e nunca terminei), era um quarto-sala minúsculo que dividíamos em quatro. Conheci a Lady Babel nessa época, figuraça! Uma guria louca que aparecia de vez em quando lá na kit pra pegar uns ácidos. A gente se entendia, se conectava. É uma das poucas pessoas que fiz questão de manter na minha vida.
Até então eu nunca tinha dado muita bola pra política e essas coisas, só comecei Filosofia porque achei que era o mais fácil, até que conheci o pessoal do curso, trocava umas idéias maneiras com os caras que dividiam a kit comigo. Mas aí eu comecei a me dar conta do tanto de barbaridade que estava acontecendo a minha volta e me decidi: eu tinha que fazer alguma coisa pra mudar aquilo! Arrumei um emprego numa lanchonete perto da onde morava e ganhava uma miséria, mas todos meus trocos iam pra cartolinas e panfletos que fazíamos. “STOP THE WAR!” Eu não tinha tempo nem de tomar banho, vivia desgrenhado e cabeludo, era da faculdade para o trampo, depois para as passeatas, manifestações, arrumava um tempo pra tirar um som com um pessoal que tava na mesma vibe que eu. A gente compunha, batucava, protestava, fazia um som que passava uma mensagem. Engraçado que não consigo me lembrar de nenhuma namorada dessa época… a gente era muito free, se amava muito, sem caretice, sabe. Acho que foi por esses anos que fui numa festa bacana, tal de Woodstock… bem paz e amor, fiquei tão chapado que não lembro de quase nada.
Aí o que aconteceu foi o seguinte: absolutamente nada mudou! A guerra, a fome, a miséria, tudo continua lá como sempre esteve. Meu, isso me deixou puto! De que adiantou a gente protestar, se manifestar, se amar, querer mudar o mundo?! Eu fiquei nessa de ser cabeça, paz e amor e tudo mais até lá por 70 e poucos, mas depois não quis saber mais disso não! Na verdade, eu não queria saber de mais nada. Eu tinha lutado por tanta coisa, almejava tanto e depois vi que tudo aquilo não adiantou bosta nenhuma, eu queria mais era explodir tudo. Larguei a faculdade e fui trabalhar num boteco meio underground que deixava umas bandas tocarem à noite. De dia eu ficava carregando caixas feito um burro de carga e recebia uma miséria, mas pelo menos o dono me deixava ensaiar à noite com uns caras que tinha conhecido por lá e estavam na mesma merda que eu. A gente tocava com raiva mesmo, sem entender direito que som era aquele que tava saindo. Passávamos a maior parte do tempo bêbados e drogados, arranhando qualquer coisa nos instrumentos detonados que tínhamos. Parecia que tudo que a gente queria era demonstrar toda aquela frustração e sensação de vazio que sentíamos pela música, então era uma coisa caótica mesmo, totalmente sem sentido. Uns estudantes metidos a besta que andavam por lá chamavam isso de “niilismo”, pra mim isso era só um nome bonito pra um sentimento escroto. No final das contas foi uma década perdida mesmo, principalmente por causa daquela maldita rebeldezinha que cruzou meu caminho, toda dona de si com sua calça jeans rasgada e seu cabelo colorido. Era um groupie, uma poser, só queria saber de andar comigo por causa da banda, mas eu achava que era de verdade. Ela foi morar na kitnet comigo e, quando não estávamos juntando os trocos pra comprar alguma droga vagabunda e nos chaparmos juntos, a gente brigava, quase se matava. Foi um inferno, mas eu amava aquela vadia. Ficamos por alguns anos nessa vida de cão, até quase o final dos anos 80, nos destruindo… até que o dia em que a peguei na cama com o baixista e até então meu melhor amigo, aí dei um passa-fora na bandida e fiquei sem rumo. Aquela cretina conseguiu me tirar o chão!
Pra não dizer que os anos 80 foram uma grande merda, uma coisa salvou: meu aniversário de 85 foi do caralho! Mas, além disso, só consigo lembrar de viver uma vida de cão pelos becos sujos da cidade, completamente perdido…
Foi só aí que eu percebi que não era mais nenhum guri brincando de rock star, eu tinha uma vida pra viver e bem, se possível! Homem nenhum gosta de admitir isso, mas meu coração ainda estava destruído por causa daquela uma e eu tentava de todas as maneiras superar isso, mas foi difícil. Pelo menos consegui me estabilizar na vida, consegui achar uns caras responsa pra montar uma banda e a gente fez um sucesso relativo. Éramos todos mais experientes e isso se refletia muito na nossa musica, era uma parada mais calma, bem sofrida e amargurada, mas serena. A gente tinha um baita futuro, nosso trabalho era bem reconhecido, mas aí o boca-aberta do vocalista resolveu se suicidar e tudo voltou à estaca zero. Os anos seguintes passaram como um borrão por mim, eu praticamente não os vi. A idade chegou de vez e eu simplesmente desanimei. Cansei da música, cansei de viver disso, cansei de tentar ser alguém.
E agora cá estou eu, no meu septuagésimo aniversário. Um velhote sem história, sem família, sem legado, sem nada. Eu tentei ser alguém na vida, e como tentei. Mas agora nada mais faz sentido, não vejo mais razão em continuar em um mundo no qual eu sempre botei esperanças, tinha fé que fosse se tornar um lugar melhor e, hoje, percebo que eram esperanças ingênuas e vazias… isso aqui só vai de mal a pior!
Uma última dúvida me inquieta: as dezenas de remédios que, supostamente, serviriam para amenizar minhas dores (eles esquecem que dores da alma não tem cura) misturados com o whisky barato, presente de aniversário, ou ela… minha guria, que me acompanhou durante esses anos todos, a única que nunca me abandou, sempre esteve ao meu lado, minha guitarra… acho que, em homenagem aos velhos tempos, vou secar essa garrafa e depois me entender com as cordas afiadas da minha velha amiga.
Roque Enrow
Notícia de última hora sobre o estado de saúde de Roque Enrow:
Enquanto aguardamos e torcemos pela recuperação de Roque, que tal ouvir grandes clássicos que fizeram parte de sua vida? Roque, essa é só uma fase ruim, vai passar. O Roque sobreviverá!
não querendo ser chato ja sendo, mas tratar o rock ‘n’ roll que é o estilo musical mais vitorioso que ja existiu como um perdedor chega a ser falta de respeito…
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Taí a verdadeira história social do Roque.
Haha, gostei, personificou o rock. Hoje em dia ele apanha demais, tadinho.
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Avisa ai o Roque Enrow que, mesmo ele estando acabadinho, muita gente não desistiu dele. Afinal, todos que sentem o que é viver este estilo torcem pela sua recuperação e proliferação. Eu, por exemplo, quero que meus filhos o conheçam e sintam muito do que sinto com ele. Não da pra deixar ele se perder no caminho e pegar umas cores que não combinam com a mensagem que ele quer transmitir.
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Muito bom o texto, ainda mais com os links! ;D O rock não foi tratado como perdedor, mas sim foi contada a sua tragetória, de uma maneira interativa e em primeira pessoa (o que achei muito legal!), ou o que a mídia embala atualmente é música para os nossos ouvidos? Claro que tem muita coisa boa, e o rock nunca vai morrer… Como tudo tem seu tempo, já já ele volta com força total o/
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[…] assunto da semana é o Dia Mundial do Rock e a gente bem sabe que controvérsias rondam a comemoração. Aqui no blog vamos fazer alguns […]
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