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“Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo”. Cito mentalmente um trecho presente em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, enquanto fico apertando o REW e o FF da minha memória para reviver o último sábado, 21 de dezembro. Se, enquanto escrevo, lembro de uma névoa úmida onde as palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais, é por um motivo bastante justificável: o show da Pitty no Araújo Vianna.

Após mais de um ano longe da capital, Pitty voltou a Porto Alegre para apresentar seu novo show, onde dá um “rolê aleatório” (palavras dela) por todos os seus discos. Na banda, uma super novidade: agora, além de Martin Mendonça na guitarra e Paulo Kishimoto no baixo, a cantora é acompanhada por Nico, multi-instrumentista gaúcha, na bateria (é as gu!!!). A entrada de Nico na banda é um marco não apenas para o contexto da música brasileira, mas para a cena do rock mundial como um todo. Em um cenário historicamente dominado por homens, a presença de mais uma mulher no palco não é apenas uma conquista individual, mas uma representação de resistência, visibilidade e redefinição de papéis. Pitty sempre foi uma figura que questionou as normas, tanto em suas letras como em sua postura de palco, e Nico assumir as baquetas da banda reforça ainda mais essa imagem coletiva de visibilidade feminina.

Todas as fotos por Fernando Chassot

O vídeo de abertura já dava o tom do que a plateia estava prestes a presenciar: uma noite cheia de pulsão de criação, de vida. Assim como Lispector, Pitty não se limita ao intelecto. Ela não cria apenas para ser entendida, mas para ser sentida, experimentada. Cada verso cantado vinha carregado de emoções, como as palavras de Clarice, que, transfundidas de sombras, ganham vida na atmosfera, se espalhando no ar como um vapor que nos envolvia por inteiro. A artista segue com uma capacidade quase irritante de transformar algo tão efêmero quanto o som em uma experiência física e quiçá palpável. Não importa se as palavras são simples ou complexas; o que realmente importa é como elas reverberam em nossos corpos, como elas nos tocam, se entrelaçando com o que somos.

No palco, a figura de Pitty é a personificação da “névoa úmida” que Clarice menciona. A cada ano que passa, ela se torna mais do que uma intérprete: ela é a música; é o som que se mistura com o ambiente, é o corpo que se dobra e se entrelaça com as melodias. Ao serem executadas ao vivo, suas músicas, como o que Lispector descreve, se tornam estalactites, renda, música transfigurada de órgão. E cada acorde entoado pela banda, extremamente conectada, parece formar uma rede de sentimentos onde a leveza e o peso se equilibram com uma elegância paradoxal, tal qual o solo de Martin durante a apresentação dos músicos.

A transição entre músicas foi marcada pela fluidez já conhecida da artista. Pitty, muito à vontade, se entregava ao calor do momento e à sincronia entre o que cantava e o que vivia ali, em tempo real. Em “Equalize”, por exemplo, que sempre tem um momento do refrão cantado à capela, a letra se tornava um eco corporal, como se cada estrofe fosse uma extensão de si. Em “Desconstruindo Amélia”, o jogo de cena que antecede a canção dá um plus à celebração da autonomia e da força feminina. Em “Um Leão”, a mesma coisa: é uma escrita, mas não no papel: é a escrita da carne, do corpo em movimento.

É chover no molhado dizer que Pitty faz do palco o seu território, onde não há lugar para retração ou para convenções. Nesse “rolê aleatório”, ela reinventa, através do repertório e da cinesia, sua própria estética, que reflete o caos e a beleza de sua jornada. Ou seja, de aleatório, o show não tem nada: passa de forma concatenada por toda a sua discografia, e o mais divertido é que Pitty pode fazer isso porque tem estofo para isso: não precisa nomear uma turnê, não precisa encaixá-la em uma determinada era, não precisa usar letreiros. Em uma época em que recebemos conteúdo mastigado e sentimos necessidade de nomear tudo, onde artistas e influenciadores se moldam às expectativas da audiência, Pitty apresenta um show banhado em subjetividades. Entre e fique à vontade para entender como quiser. Não é um show que vem com tutorial do YouTube, é preciso saber interpretar nas entrelinhas.

Se eu puder escolher, escolho justamente o que fixa para sempre a experiência na memória do corpo: I couldn’t care less se a turnê da Pitty não tem nome ou se ela não lança um álbum há sei-lá-quanto-tempo. Quero o encontro com a profundidade que só acontece no espaço-tempo de um show ao vivo, quando a gente se despe de si e se preenche do outro, onde a arte desafia os limites da palavra convencional e se faz entender, não pela lógica ou pela intelectualidade, mas pela emoção direta.

Da plateia, ouvi comentários de que Pitty pouco se comunica com o público e me peguei pensando: quando canta, ela não está apenas transmitindo um conteúdo, mas se tornando, fisicamente, o instrumento de uma comunicação genuína. Quais palavras são necessárias entre uma canção e outra? Assim como a protagonista de Lispector, que, em seu silêncio e em sua busca, se faz mais “real” por não precisar se justificar ou se enquadrar, Pitty, mais de vinte anos depois, segue nos convidando a perder a rigidez da linguagem e nos permitir ser guiados pelo que de fato importa: a música.

Sei que a turnê fica na estrada até março do ano que vem, então fica a sugestão de que, quem puder, presencie essa explosão de arte e de conexão. Garanto que cada show será uma oportunidade de se conectar novamente com o que nos move e inspira.

Feliz ano novo!

Foi publicado recentemente o dossiê Cultura Pop, Estudos de Fãs e Indústrias Criativas na Brazilian Creative Industries Journal, revista de acesso aberto do Programa de Mestrado Profissional em Indústria Criativa da Universidade FEEVALE, em Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul. O dossiê foi editado por Adriana Amaral (UNIP) conjuntamente com Simone Driessen (Erasmus Rotterdam University, da Holanda).

A variedade de temáticas e articulações teóricas mostra a vitalidade dessa área e conta com artigos publicados em português, espanhol e inglês.

O dossiê é dividido em duas partes e pode ser acessado nos links abaixo:

Parte 1 (conta com um artigo que escrevi em coautoria com Eloy Vieira e Rafaela Tasbasnik intitulado “Fã ou Hater? Uma aproximação entre os estudos de fãs e a cultura do cancelamento”)

Parte 2

Boa leitura!

Com apresentação de Paulo Miklos e organizado pelo jornalista Saulo Marino, obra reúne 100 canções, incluindo quatro inéditas.

O livro Grosswords, que reúne todas as letras de Marcelo Gross, está disponível para pré-venda com desconto de 10% até o dia 23/06. A editora Aboio é responsável pela publicação. Neste período, 20% do que for arrecadado será doado para a reconstrução da Livraria Taverna, no centro histórico de Porto Alegre, que teve parte de seu estoque e de seu mobiliário danificado pelas chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul.

“São 50 letras que escrevi para a Cachorro Grande, 50 para meu trabalho solo, 50 anos de vida, então achei um momento apropriado para fazer essa compilação, que conta com letras como Lunático, Dia Perfeito, Sinceramente, Alô Liguei, Que Loucura e Bom Brasileiro, entra outras. Espero que as pessoas gostem e curtam, pois é um momento muito especial para mim”, declarou o artista.

Foto: Luiza Castro

Grosswords – As letras de Marcelo Gross conta com quatro composições inéditas, foi organizado pelo jornalista Saulo Marino e traz prefácio assinado por Paulo Miklos, ex-Titãs.

“Essa é uma oportunidade rara de revelar em perspectiva o trabalho do compositor através dos anos. É um livro para ler e ouvir em alto e bom som, já que é muito fácil encontrar as músicas nas plataformas digitais para viver a imersão completa. Mas este livro tem vida própria. Você pode cantar com ele se quiser. Ou só mergulhar na poesia. Será que ela se distanciou do ritmo, das melodias e da distorção? Eu sinto que não. Este livro está pulsando e gritando!”, escreve Miklos na apresentação.

Grosswords pode ser adquirido com desconto, frete grátis e nome nos agradecimentos até o dia 23/06, através do endereço http://www.catarse.me/grosswords_marcelo_gross, ou pelo site da editora: aboio.com.br.

Meu primeiro show pós-licença-maternidade aconteceu em meio ao caos de uma Porto Alegre que sofria com as chuvas – e com o descaso das autoridades. Bairros destruídos, árvores caídas no meio do asfalto, sinaleiras desligadas, mais de um milhão de pessoas sem luz, e com o prefeito pedindo motosserra emprestada à população e tentando falar com a empresa – que privatizou – via Twitter (X). Parece piada, mas não é. Ainda hoje, cinco dias após o show, milhares de pessoas seguem sem água, sem energia elétrica e sem assistência do governo local. E a noite de 18 de janeiro serviu como uma mola propulsora, onde o Planet Hemp endossou e avivou ainda mais o sangue no olho do público que lotava o auditório Araújo Vianna.

 A banda veio à capital gaúcha com a turnê do excelente Jardineiros, álbum que levou duas categorias no Grammy 2023 (“Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa” e “Melhor Interpretação Urbana em Língua Portuguesa”), lançado 22 anos após o último disco de inéditas da banda.

Eu nunca gostei muito de fumar maconha, mas sempre adorei os maconheiros mais famosos do Brasil. Na adolescência, fui completamente capturada pela sonoridade e pelas letras do Planet Hemp, que me faziam refletir sobre questões políticas, sociais, econômicas, culturais e raciais. Pra mim, até hoje, segue sendo uma das melhores e mais relevantes bandas do país. No público, embora eu parecesse a única com os olhos vermelhos por outro motivo (quando entraram no palco, uma energia absurda tomou conta do auditório e eu instantaneamente comecei a chorar), pessoas de diferentes faixas etárias se amontoavam, da maneira mais gentil possível, para chegar mais perto da banda. Aliás, foi a primeira vez que eu vi um show no Araújo Vianna sem grades e com a galera grudada no palco desde o primeiro segundo do show. Pode parecer folia, mas não foi: BNegão fez o convite e, quem quis, chegou perto, e quem não quis, ficou em seus respectivos lugares marcados.

Todas as fotos por Leandro Monks

Com um show extremamente político – e não poderia ser diferente –, o Planet tocou nada menos do que 35 músicas do seu repertório. Focado, óbvio, no álbum mais recente – mas óbvio, também, sem deixar os clássicos de lado –, a banda esteve no palco por duas horas. BNegão (vocal), Marcelo D2 (vocal), Formigão (baixo), Pedrinho (bateria), Nobru (guitarra), DJ Venom e Daniel Ganjaman – produtor do disco, que do alto do seu praticável se revezou entre guitarras e teclados – falaram muito sobre os problemas do Rio de Janeiro, mas vinculando o tempo todo com os problemas de Porto Alegre e de todo o país. Os músicos fizeram reverência à cena musical local – em especial a dos anos 80 e às bandas Defalla, Garotos da Rua, TNT e Os Cascavelletes, e não deixaram de citar também seus contemporâneos: Comunidade Nin-Jitsu, Da Guedes e Ultramen (com um pedacinho de “Dívida” no meio de “Contexto”). Ainda, Mateus Aleluia e Os Tincoãs, Chico Science & Nação Zumbi, Mr. Catra e Ratos de Porão foram homenageados. Marcelo Yuka, um dos principais parceiros do grupo, foi lembrado durante todo o show, especialmente porque o músico faleceu em 18 de janeiro de 2019 e estava fazendo cinco anos de sua morte naquela noite. Rolou também a participação especial do guitarrista Jacksom, ex-integrante da banda, e que esteve na fatídica prisão do Planet em 1997.

BNegão e D2 reforçaram a importância das parcerias e do coletivo, citando a Opinião Produtora como decisiva na carreira do Planet, visto que Porto Alegre foi uma das primeiras cidades onde a banda aconteceu, de fato, depois do Rio de Janeiro. Da plateia, um coro emocionado mostrava que os oito anos que POA esperou para rever o Planet Hemp valeram a pena; todo mundo entregue, com pouquíssimos celulares ligados, conectados através do que realmente importa: a música.  

No fim, saímos todos do Parque da Redenção com a certeza de que o Planet Hemp precisava mesmo voltar. Eles estavam fazendo muita falta no atual cenário mainstream (embora eles sigam com a postura underground) para bagunçar, apontar, colocar o dedo na ferida, provocar. Precisávamos de uma banda com a sonoridade inconfundível do raprockandrollpsicodeliahardcoreragga e com essa atitude contestadora, sem papas na língua, falando sobre desigualdade, violência, política, legalização da maconha; criticando o sistema, confrontando a censura (2024 e estamos falando de censura!), desafiando as normas sociais e com uma postura de absoluta resistência. O tempo fez muito bem para o Planet Hemp. E eu espero que eles taquem muito, muito, muito, MUITO fogo nessa porra agora.

Foto: Amora Imagem

Na próxima semana, os fãs do rock gaúcho ganham uma nova nova temporada do podcast comandado por Carol Govari e Lelê Bortholacci ‘Eu Quero Ser Seu Amigo de Novo’, com a estreia do primeiro episódio programada para as 17h de 3 de agosto. Para inaugurar a segunda fase do programa, os apresentadores convidaram Beto Bruno, vocalista da banda Cachorro Grande, para relembrar histórias divertidas, inéditas e surpreendentes da trajetória do grupo.

Para esta nova temporada, em que mais de 10 episódios devem ser disponibilizados no canal de YouTube da atração e na emissora por assinatura Music Box Brazil, serão abordadas a saturação do mercado gaúcho e a necessidade de expansão, que levou bandas como Cachorro Grande a se mudarem para São Paulo. A visão do rock gaúcho sob outros olhares é contada por meio de entrevistas como a de Martin Mendonça (guitarrista da Pitty) e de Henrique Portugal (tecladista do Skank e produtor musical).

Na primeira temporada, ‘Eu Quero Ser Seu Amigo de Novo’ explorou especialmente a década de 90 do rock gaúcho, do primeiro escritório artístico de Lelê até a explosão do gênero por todo o Estado. A ideia do podcast é relembrar e confirmar a importância dessas bandas para a música e a cultura do estado.

Você encontra o podcast clicando aqui.