Na quarta faixa de Sobre Viver, seu álbum mais recente, Criolo avisa: “Se o mundo é terra de ninguém/ E o mal quer te subtrair / A fé do povo brasileiro / Não vai te deixar cair”. Força, garra, luta, fé. E foi em busca dessa fé que me dirigi ao Araújo Vianna, sábado passado, dia 23, para a apresentação do rapper paulistano.
O fato de o show ter começado com “Ogum Ogum” que, no álbum, tem a participação de Mayra Andrade, me remeteu imediatamente à festa de sabores e saberes que se encontram para inventar o Brasil generoso do qual fala Simas Rufino em Corpo Encantado das Ruas. O Brasil (e o povo brasileiro) de que/quem Criolo fala, é o Brasil que desafia o Brasil tacanho, boçal, mesquinho, fundamentalista, que vende a Amazônia no eBay.
Criolo, em Sobre Viver, mistura o rap, o ragga, o samba e outros gêneros musicais gerados e transformados em territórios afro e afrodiaspóricos. Para amplificar essas sonoridades, é muito bem acompanhado por DJ DanDan e os instrumentistas Ed Trombone, Bruno Buarque e Maurício Badé. Inclusive, é através dos tambores de Bruno, Maurício e Ed que ocorre a sacralização do corpo pela dança; um diálogo – ritualístico, até – dos corpos de todos os presentes com os tambores, especialmente em “Moleques São Meninos, Crianças São Também”.

Enquanto personagem subalterno do sistema que odeia ver pretos ganhando dinheiro, Criolo inventa sobrevivência e sociabilidade. Divide a indignação, mas também divide o amor. Em um momento em que o Brasil se desmantela num oceano de ódio, Criolo usa o ódio para fazer poesia. Bate palma, sorri, encanta. Fala de dor, de violência, de solidão, de revolta, mas, como um bom brasileiro, sabe que o que espanta a desgraça é a festa. E Criolo deixa muito explícito, em suas letras, que não se faz festa porque a vida é boa: é justamente o contrário. O povo faz festa porque a vida é dura. Sem o descanso na alegria, ninguém aguentaria. Por isso, Criolo celebra. E celebra, inclusive – e por mais dilacerante que a dor seja – a vida de quem não está mais aqui, como em “Pequenina”, que não apareceu no show, mas que dialoga com a potente “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais”.
De “Quem Planta Amor Aqui Vai Morrer” até “Aprendendo a Sobreviver” – e sem deixar de passar por “Não Existe Amor em SP”, “Menino Mimado” e “Grajauex” – Criolo lembra que a ocupação das ruas atormenta o poder. Especialmente quando a ocupação é feita pelos corpos que transgridem a lógica colonial e o sistema que diz que tu não é nada.
A música do Criolo restaura uma humanidade que insiste em desaparecer no meio da violenta desumanização que nos acomete enquanto sociedade.
Eu precisava de fé para enfrentar o desmonte da educação que estamos vivendo, e por isso fui no show do Criolo. Mais do que fé, encontrei a pulsão necessária para continuar lutando contra todo esse sistema que odeia gente como a gente. A luta por outras educações, experiências, linguagens e gramáticas, como apontou Rufino, dessa vez em Pedagogia das Encruzilhadas, é uma luta pela vida.
E, como disse Criolo, a real revolução um dia virá com arte e educação. Por isso, seguimos.